(Um conto de Dom Quixote)
...Despertei! Eu adormecera, não sei por quanto tempo, mas a noite já tomava conta daquele incerto lugar. Procurei por Rocinante, mas acredito que os feiticeiros o levaram. Por certo, acharam que eu estava morto e levaram o cavalo para usá-lo em algum ato de magia negra. Pobre Rocinante, amigo de muitas aventuras, será que assim teriam levado Sancho Pança também? Desta vez, eu estava realmente sozinho, procurando um rumo, alguma pista que levasse ao esconderijo de meus inimigos. Andei até o que seria o fim daquele feudo, quando percebi que muitas pessoas seguiam para uma mesma direção. A pé, fui entre os outros, que seguiam em grande número por um caminho magicamente iluminado à noite. Havia tochas, suspensas e brilhantes em suas chamas estáticas, por todo o percurso. Ao final do caminho, meus olhos divisaram uma catedral, bela como a de Salamanca. Próximo a ela, uma área que explodia num espetáculo de cores e sons. As pessoas dividiam-se, algumas entravam na igreja e outras tomavam o rumo das cores. Certamente, tratava-se de uma festa, uma celebração dessas bem aguardadas. Notava-se pela felicidade estampada no rosto dos presentes, principalmente no dos pequenos. Foi naquele clima descontraído que estes olhos encontraram algo que a surpresa pela novidade não me fizera notar antes. No centro, onde estranhamente os outros ao redor transpiravam felicidade, eu o avistei. O gigante tinha de 3 a 4 crianças em cada uma de suas mãos! Desta vez os feiticeiros passaram dos limites. Enviar um gigante para exterminar inocentes, vítimas de um encantamento ilusório, era muita crueldade. Eu, Dom Quixote de La Mancha, que já enfrentei gigantes, leões, dragões e toda sorte de criaturas vis, em segundos preparei a lança e investi contra o covarde: “Valei-me, linda Dulcinéia nesta hora que me envolvo em combate mais que mortal! Este gigante não tem valor sequer de servi-lhe como escravo! Merece encontrar a morte!”. Os pés do inimigo eram como pedra, a lança espatifou-se no primeiro golpe. Desembainhei a espada e continuei o ataque. Os habitantes, enfeitiçados que estavam, começaram a gritar, como se desaprovassem minha atitude - muitos correram, alguns que despertaram do transe. O gigante desferiu um ataque, mas consegui desviar-me a tempo - provavelmente estaria morto se não fosse treinado nas habilidades da cavalaria. No calor da batalha, abri-lhe um talho gravemente. Movendo-se pesadamente, o inimigo começou a libertar algumas crianças no chão. Finalmente, rendia-se o canalha! Movia-se cada vez menos, até parar por completo, liberando o restante de suas vítimas. Enquanto eu o fitava, esperando alguma reação, fui surpreendido por uma súcia de estranhos. Saltaram rápido sobre mim à traição, imobilizaram-me e logo eu estava cativo no interior de uma carruagem. Levaram-me a um castelo, onde os soberanos insistiam em negar meus feitos de cavaleiro andante, e queriam fazer com que eu acreditasse ser outra pessoa. Um dia, Dom Diego de Miranda tomou o castelo de assalto e libertou-me. Aqui estou, meu caro, hóspede na fazenda deste valoroso amigo fidalgo. Mas preciso saber o que aconteceu com Sancho e Rocinante. Por ora, descanso, mas os feiticeiros ainda não livraram-se de Dom Quixote de La Mancha, “O Cavaleiro da Triste Figura”. Vossa visita alegrou-me, meu rapaz. Aprecio a companhia de jovens interessado nas aventuras da cavalaria. Pareces muito com Lourenço, grande poeta e filho de Dom Diego.
- Fascinante história, Dom Quixote. Mas receio que tenho de ir...
Baixei a cabeça e dei uma última olhada naquela antiga matéria de jornal:
“Segunda Feira, 16 de outubro de 1972.
Um rapaz tornou-se o personagem mais comentado em Belém. Sua aventura começou no final da manhã de sábado, quando atacou com uma vara alguns peixeiros que comemoravam a captura do maior Pirarucu da estação, no mercado do Ver-o-Peso. Na confusão, uma barraca de venda de tacacá foi destruída. O rapaz, que é carroceiro - segundo pessoas que o conhecem de vista - estava montado em seu burro de trabalho, vestia-se com pedaços de ferro velho e portava uma vara de madeira mais um pedaço de vergalhão amarrado ao cinto. Após o episódio, ele fugiu montado no burro, assustando motoristas e causando tumultos no trânsito da Av. Tamandaré. Testemunhas afirmaram ainda tê-lo visto à tarde na praça da república, reunido com alguns adeptos da comunidade hippie. Mas o fato mais marcante ocorreu à noite: Acabou danificando a Roda Gigante do Arraial de Nazaré. Ele atacou a base do aparelho com os objetos que portava até afetar um dos mecanismos internos. Os operadores desligaram a máquina, para evitar acidentes. - Ele estava completamente desorientado, as pessoas corriam desesperadas – disse o Ten. Gomes, da guarnição do Corpo de Bombeiros, que chegou para recolhê-lo. Na manhã de ontem, o causador de tumultos teve uma avaliação médica, e ao que tudo indica, será levado sob observação ao Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. O animal do rapaz foi encontrado próximo ao Cemitério da Soledade e junto com ele, dentro de um saco amarrado a sua cela improvisada, um exemplar do livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Até o fechamento desta edição, o rapaz não foi identificado e nenhum parente apareceu.”
Meu primo entrou no quarto. Aproveitando uma pequena distração do cavaleiro, que buscava um livro na estante, falou baixinho: - E aí, gostou de falar com o tio? Já sabe né, inventa um nome bacana pra ti. Eu não precisei porque ele foi logo me chamando de Lourenço. E vê se aparece mais vezes, que toda semana ele tenta me convencer a sair com ele em novas aventuras!
Abri a porta e me despedi do mais destemido cavaleiro andante que o mundo já conheceu.
“Javier Gerardo Guadalaraja” (pseudônimo de Paulo Nazareno no concurso literário)
Ilustração: Rogério Nunes Borges
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Conto escolhido em terceiro lugar no Concurso de Contos da Unama com a Academia Paraense de letras: “As prováveis aventuras do cavaleiro da triste figura nas terras da Amazônia” (2005). Os outros são “Quixote” de Alfredo Garcia e “Dom Menino” de Carlos Correa Santos. Os três contos estarão reunidos num único livro em publicação bilíngüe...sabe-se lá quando.