segunda-feira, 3 de abril de 2006

“Crash”, de Paul Haggis (2004)
### por Sepúlveda Gerardo ### Sepúlveda Gerardo é resenhador universal e multimedia sobre qualquer assunto, sem papas na língua, seja lá o que isso for.

Está longe de eu ser Paulo Nazareno, O grunge. Alguns leitores têm me confundido com este artista multimídia, multifacetado, multihabilidoso e multilado. Mas, não tem nada a ver, não. Ele está muito acima do bem e do mal com suas tiras incríveis, sua verve incendiária, seu humor preciso, sua cara de menino que não levou a merenda para a escola. O fato é que fui contratado a peso de ouro para escrever no Barata. Fora as 500 pilas mais oito vale-puta mensais, dois para cada fim de semana do mês, que garantem os rapapés a este gênio magnífico da criação. E não se fala mais nisso.

Porém, o que me traz aqui é "Crash - No limite", o vencedor do Oscarito. Nada mais pop em assistir ao ganhador do prêmio da Academia depois que os caras de Roliúdi elegeram a película como a melhor da temporada. Tanto que a sala estava cheia naquele domingo, quando estive com o Nazareno para fazer os últimos ajustes de minha contratação milionária. Não somos afeitos a essas coisas de multidão nem a mercadorias simbólicas reproduzidas em série para cultura de massa, como manda a cartilha das universidades de jornalismo pelo mundo afora. Ainda assim estivemos lá. Na saída do cinema, como já estávamos transgredindo o mandamento dos intelectuais, aproveitamos e fomos ao shopping fazer compras, agir como metrossexuais e comer um Big Mac.


Comida de Fresco.

Se você abomina a idéia de saber coisas do filme antes de vê-lo, ia dizer para deixar o texto por aqui e fazer outra coisa, mas tenho uma saída: NÃO leia os trechos em Marrom, certo?

Um filme com a Sandra Bullock e o Brendan Fraser e consegue ganhar o Oscar?! Eu tinha que ver isso! A Miss Simpatia e o Homem da Califórnia participam do legalzinho Crash. É legalzinho mesmo! E só! Não vamos muito além, porque se não os ativistas do movimento gay, que torciam pelo Segredo de Boukete Montain, vão cair de pau! (Ui!).

Rapaz, é muita discussão de preconceito e discriminação num filme só. É Branco, é preto, é "ticano", é "china", é islâmico. Está tudo lá. Menos os gays. Não que seja uma reclamação. Eu, sinceramente, entendi a onda da Academia. Já tinha o Brokeback e o Capote. Para que mais discussão sobre os rapazes alegres? Estratégia dos produtores e corte de gastos das produtoras, que por sinal é a mesma do Jogos Mortais, a Lions Gate Films (LGF). Quando começou o Crash até achei que apareceria o bonequinho do filme, dizendo: "Hello, Joe, I wanna play a game?".

Não vou me estender nas histórias, porque são muitas. E isso até depõe contra o filme. "Não se aprofunda em nada", já me disseram. Vale mesmo é que a trama mostra o que muita gente já sabe há séculos: o ser humano é uma merda mesmo! Mas, pode ser gente boa também. E pode ser um merda de novo, sucessivas vezes, até a morte. Crash mostra os discursos sendo desmontados com a realidade. Por exemplo,
[se você for daltônico, afirmo que o trecho começa a ficar marrom agora]
com o preto ladrão que se acha discriminado o tempo todo e defende sua raça não assaltando os brothers. Ele acaba se fodendo quando tenta roubar um carrão do diretor negro da TV. "Você é uma vergonha", diz o assaltado.
Lá na frente, o bandidinho furreca se redime salvando uns "chinas" que estavam sendo traficados por outro oriental.
Tem ainda a esposa Sandra Bullock do promotor Brendan Fraser que descobre a grande amiga na empregada doméstica latina. Quando a dondoca se espatifa caindo da escada, só consegue ajuda com a "ticana".
A "amiga" perua que poderia levá-la ao hospital estava numa sessão de massagem. E por aí seguem as lições de moral: policial-branco-racista que salva negra num carro em chamas; iraniano que tenta matar um latino, mas tem a alma salva do mármore do inferno pela filhinha do seu desafeto – a menina assusta todo mundo levando bala de festim na cabeça, disparada pelo sudito do Aiatolá komeini; o tira preto bem sucedido que está pouco se fodendo pro irmão igualmente preto mas desigualmente lascado.


Cara, é tanta gente sofrendo e cometendo discriminações explícitas que eu devo ter esquecido alguma coisa. Mas, ainda cabe mais nuanças no roteiro. Poderia ter a cantora lésbica que se apaixona pelo ator gay, que por sua vez, é terrorista da Al Qaeda, mas descobre que George W. Bush salvou seu tio-avô de um afogamento num barril de petróleo numa de suas viagens de negócio ao Iraque, e acaba entrando pros Hare Krishnas e casando com a cantora que a essa altura já havia esquecido sua amante, uma brasileria negra, nordestina, filha de japonês com alemão, que trabalhava no Pentágono. Ufa!

É um filme legalzinho, já disse. Mas, nada acontece nesta porra! Todas as situações de tensão são diluídas com alguma artimanha já prevista pelos roteristas e diretor. Quase que eu solto uma rojão dentro do cinema, quando a Sandra Bullock caiu da escada parecendo que ficaria tetraplégica, de tanto que não acontece nada. Pra ver: nem na queda não houve nada demais. A mulher aparece no hospital com a mesma cara de quem se salvou do ônibus do Velocidade Máxima! Porrrrra!!!

No fim o cara mais escroto da história é o policial bonzinho, rejeitador do comportamento racista do parceiro de viatura. Mais uma vez o discurso perde para realidade. O tira legal dá carona a um negão. Pára: achei isso estranhíssimo! Dar carona a qualquer hora é perigoso e incomun para caraleo, ainda mais na noite perigosa e fria de Los Angeles. E pior: aida mais para um rapaz... assim.. digamos... com jeito de quem infringiu repetidas vezes o Artigo 157 do Código Penal... (já vão dizer que estou sendo preconceituoso, mas eu não daria essa carona, nem que o diretor do filme me obrigasse!). Os dois no carro, conversa vai, conversa vem! O negro começa a rir! O branco se aborrece! O negro põe a mão no bolso e em seguida toma um peteleco no meio das fuças! O pior é que o carona só estava tentando mostrar que tinha uma imagem de São Cristóvão igualzinha ao que o tira ostentava no painel do carro. A prepotência do policial o levou a imaginar que o negro resolveria uma questão besta com um branco sacando um revólver. Viagem, né?
Pensando bem, essa maldito roteiro não convenceu! Mas, é cinema e na hora achei até bacana! Agora entendi o que o José JK Wilker queria dizer na apresentação do Oscar, exibida pela Grobo.


Ainda bem que Jim Carrey está no filme para aliviar os momentos de tensão.

Agora me perdoem os politicamente corretos pelas expressão como pretos, chinas, ticanos, viados. Quis dizer, na verdade, afrodescentes, povos orientais, imigrantes latino-americanos e homoafetivos, respectivamente. Mas, sabe como é, sou gente que nem os personagens do Crash: uma merda, mas escrotão também. Tudo de vez em quando e não necessariamente nesta mesma ordem. Ah, vai, dá um desconto!

Aproveita, quando for ver o filme, e dá uns R$ 183 ao flanelinha na saída ou convida o mendigo para jantar e dormir na sua casa por umas três semanas ou deixa a empregada doméstica descansar durante o expediente e lave a louça por ela até o próximo dia 31 de dezembro ou ainda aceite aquele seu primo afetado como um grande orgulho na família por conta das roupas fashions e rosinhas que ele usa. Será um bom exercício de tolerância, tal como Crash debate nas suas histórias entrelaçadas! Quem conseguir terá direito a prestar serviços comunitários das 5h da manhã ao meio-dia aos egressos do sistema penal, cometedores de crimes hediondos! Ah, as sessões serão no Beco do Relógio*, no bairro do Jurunas! Vai encarar?

* Área considerada de certa periculosidade pelos cadernos policiais dos jornais da cidade.

Uma canção, "Can't make a sound" (Elliott Smith).

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